quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Palestina, ok. Mas Israel risca o limite, em Jerusalém



Robert Fisk, The Independent

Carregam com elegância as próprias feridas, os prédios da velha “linha verde”. Esqueçam os hotéis da nova Jerusalém, do outro lado da estrada, a linha de trem urbano de alta tecnologia, última moda, que brilha trilhos abaixo; só considere os buracos de balas nas paredes da esquerda, os estilhaços ainda encravados na fachada preservada do que foi um dia um bunker do exército de Israel, e é hoje a pequena galeria de arte de Raphie Etgar.

Ainda se pode caminhar entre os abrigos enferrujados, do outro lado da estrada. A cem metros dali ficava a Legião Árabe. A cem metros daqui, era a fronteira da Jordânia.

Essa é a “linha” [ing. border] de 1967 para trás da qual Mahmoud Abbas insiste que os israelenses devem retroceder, a “fronteira” [ing. frontier] que Bibi Netanyahu considera “vulnerável” demais para voltar a ela, em seja qual for o tratado de paz. Deixem que algum exército volte ao outro lado da estrada, e Jerusalém estará outra vez dividida e não será a “capital eterna unificada” de Israel. Deixem que os israelenses mantenham a anexação ilegal da mesma terra, e Jerusalém Leste jamais será a “capital” da Palestina. As aspas são indispensáveis, como em “paz”.

A arte que se vê no “Museu da Junção” [ing. Museum of the Seam[1]] – “junção” é uma espécie de palavra substituta de “linha” (que Israel não reconhecerá), mais ou menos como “assentamento” [orig. settlement] é substituta necessária de “colônia” [ing. colony]” – trata de guerra e paz, de Bagdá e do 11/9, de suicidas-bombas, uma assustadora e altamente efetiva colagem de braços e pernas, plástica e claramente amputados, até um rifle AK-47, e uma fábrica Chaplinesca, à Tempos Modernos, de engrenagens de caligrafia islâmica [orig. and a Charlie Chaplin factory of cogwheels of Islamic calligraphy (?)].

De certo modo, nem surpreende encontrar o diretor de arte e curador chefe empoleirado no telhado, pequeno, de óculos de armações grossas e respiração pesada, enquanto fala sem parar sobre os temas que lhe parecem mais caros ao coração: arte, oportunidades perdidas, esperança e desespero potencial, tudo misturado com alguma obstinação de criança teimosa. Raphie Etgar foi comandante de tanque, combateu em duas guerras – em 1967 no Sinai, em 1973 no Golan – e na sangrenta batalha de Karameh (da qual quanto menos se falar, melhor) e “vi a morte de perto e perdi alguns amigos”.

Mas chega de falar de guerra e paz. “O fato de nosso museu estar localizado sobre a ‘junção da linha verde’ [orig. ‘green line seam’] é significativo, claro, mas é mais uma ‘junção’ conceitual. Não estamos instalados aqui por acaso, mas queremos transmitir uma mensagem. Preferimos manter a ‘junção’ em contexto mais amplo. Na exposição, lidamos com o choque de civilizações – gostaria que os visitantes vissem isso no contexto de Oriente e Ocidente.”

Não tenho muita certeza de que a linha de 1967, logo à frente da janela às costas de Raphie Etgar, contenha algum tipo de lição sobre o mundo. A Europa não está em guerra para apossar-se de Londres ou Paris só para si e para mais ninguém. E Israel, com certeza, quer Jerusalém só para si. Mas o problema é que o ex-comandante de tanque crê que nós europeus partilhamos Londres e Paris com nossos imigrantes muçulmanos sem, por isso, nos sentirmos obrigados a entregar-lhes nossas capitais.

Difícil definir o homem. É de esquerda, com certeza. É homem de princípios morais, com certeza. Lê o Haaretz, parece-me. Absolutamente não nutre nenhuma espécie de amor pelo primeiro-ministro de Israel, depois do que disse em New York sobre algum estado para os palestinos. “Estava frente à televisão e tentei ouvir um pouco menos ‘de cima para baixo’ o que diziam os dois líderes. Netanyahu saiu-se melhor. É melhor ator. Sabe dar seu show e, se não souber que ele está sempre jogando o mesmo jogo, você talvez se sinta tentado a acreditar no que ele diz. É o melhor acrobata em todo o Oriente Médio.”

“Depois, veio o presidente palestino, que acabou com qualquer esperança que eu ainda tivesse de que ele abriria a porta e não repetiria as acusações de sempre. Tínhamos uma chance, as pessoas poderiam sentar e tentar encontrar algo de novo. Mas foi só repetição do mesmo velho jogo, Netanyahu com seus contorcionismos e aquela voz de quem não diz a verdade. Acredito mais numa peça de Shakespeare, do que nessas pregações.”

Perguntei que personagem shakespeareano ele entregaria a Netanyahu. Ele disse “Brutus”, eu sugeri o Rei Lear; pensei, mas não disse, que muitos chefes do partido Likud tratam os palestinos como Calibãs. “Acho que o cansaço, que é muito, por aqui, acabou com a esperança das pessoas” – diz Etgar. “E aí vem a força, em vez da esperança.”

A ideia dele – tanto quanto consigo sintetizá-la – é que Israel deve preparar-se para partilhar sua terra enquanto está mais forte, em vez de adiar para quando já não tiver tanta “força”. E há “regras para negociar” – é preciso tratar com respeito os outros povos.

Etgar, então, permitiria que os palestinos tivessem sua capital em Jerusalém Leste, e Israel, na parte oeste da cidade? Dessa vez, nenhuma hesitação. “Se eu estivesse no poder”, diz ele de repente, “eu não dividiria – eu, não. Acho que, aí, os palestinos tocam num ponto muito, muito sensível.”

“Devem conseguir a ‘Palestina’, como país, como lugar para viver. Deem a eles a Cisjordânia – mas não esqueçam coisas muito sensíveis e básicas e significativas para a nação judaica. Eles devem reconhecer a identidade judaica dessa terra [Israel]. Acho que, se se tratasse de Ramallah, não deixariam por menos”.

Percebo que, em algum ponto da conversa, nos afundamos num precipício. Etgar fala de partilhar “um sentido de direitos humanos”, mas em Jerusalém há muitas “pedras que sangram”. Palestinos e árabes têm de aceitar um “quarteirão” muçulmano-árabe na parte leste de Jerusalém. “Há muitas cidades com ‘quarteirões’. Mas vir e declarar que ‘aqui será a capital da Palestina’?! A história da minha própria família exige. Ninguém conseguirá arrancar isso dos ossos de todos os que estão enterrados aqui.”

Subo até a janela de vigia, no telhado, de onde vejo o Monte Scopus e o Monte das Oliveiras. É possível que, algum dia, tenha parecido boa ideia voltar para a “linha verde”, Raphie Etgar dissera antes de eu sair. “Mas o tempo mudou as coisas”.

Ah, a história – sempre culpada, sempre estendida como um tapete sobre Jerusalém. Na saída, tentei fechar a grade do poço da escada. Não pude. Estava fundida à parede, congelada no tempo, desde 1967.


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[1] Na página do museu, em http://www.coexistence.art.museum/Coex/Index.asp lê-se Seam - Coexistence. Todas essas denominações são tão traduzíveis quanto intraduzíveis. Traduzir seam por “coexistência” é traduzir para o idioma universal da ocupação israelense da Palestina, que é uma construção de propaganda. Seria como ‘traduzir’ “Coca-Cola” por “Isso é que é”, ou “McDonald” por “Amo muito tudo isso”, como traduzem-se os spots de publicidade, e pretender que seria tradução para o português do Brasil [NTs].

Tradução: Vila Vudu

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